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Entenda o papel do sistema endocanabinoide na Síndrome do X frágil

A síndrome do X frágil (SXF) é um distúrbio genético hereditário do neurodesenvolvimento que envolve mutações no gene FMR1 do cromossomo X. É considerada a segunda maior causa de deficiência intelectual, ficando atrás somente da Síndrome de Down.

Sua prevalência, segundo estudos, é de aproximadamente 1 a cada 4000 no sexo masculino e 1 a cada 6000 no sexo feminino [1]. Essa menor frequência em mulheres se deve ao fato de a mulher possuir dois cromossomos X, o que acabam por protegê-la em parte do desenvolvimento da síndrome.

A SXF é uma síndrome associada a diversas deficiências comportamentais e cognitivas (principalmente linguagem), e possui forte relação com o Transtorno do Espectro Autista, ansiedade, características agressivas, isolamento social, entre outros [2].

Impacto de mutações no gene FMR1 no desenvolvimento da SXF

O principal componente genético envolvido na SXF é a mutação (metilação) no gene FMR1 que codifica a proteína FMRP, uma proteína fundamental para a função sináptica, plasticidade e para o desenvolvimento de conexões neurais durante o desenvolvimento e maturação do sistema nervoso. Se houver mutação no gene FMR1, há ausência de transcrição gênica do mRNA e tradução da proteína FMRP, gerando o quadro característico da SXF [2].

Portanto, o grau de metilação de FMR1 irá definir, em parte, o fenótipo comportamental apresentado pelo individuo portador de SXF. Em geral, pacientes com maior grau de metilação têm um fenótipo mais grave de SXF, como pior desempenho cognitivo acompanhados de sintomas graves do espectro autista [3,4].

Influência do sistema endocanabinoide no sistema nervoso central

O sistema endocanabinoide exerce múltiplas funções em diferentes sistemas fisiológicos do corpo humano. Particularmente, cada vez mais surgem evidencias científicas acerca do papel desse sistema no desenvolvimento e funcionamento do sistema nervoso central, principalmente em relação à plasticidade sináptica [5].

Os principais mediadores químicos endógenos do sistema endocanabinoide são o 2-araquidonoilglicerol (2-AG) e a anandamida (AEA), além dos receptores CB1 e CB2, sendo que os receptores CB1 são expressos em abundância no cérebro [2].

As regiões cerebrais com maior quantidade de receptores CB1 incluem áreas corticais, cerebelo, gânglios da base e diversos núcleos neurais do sistema límbico envolvidos no processamento das emoções, aprendizado, memória, realização de funções executivas, interação social, entre outros [2].

Uma característica importante do sistema endocanabinoide no cérebro é que os seus mediadores endógenos são produzidos e liberados “sob demanda”, ou seja, em resposta à ligação e ativação da sinalização neuronal. Além disso, evidências científicas indicam que o sistema endocanabinoide exerce um papel importante na função cerebral e alterações nessa sinalização em modelos animais resultam em profundas mudanças na cognição e comportamento [6,7].

Devido a essa importância para o neurodesenvolvimento, acredita-se que terapias farmacológicas que atuem neste sistema possam ser benéficas para tratamento de diversas desordens cognitivas e comportamentais.

Qual a relação do sistema endocanabinoide com a SXF?

Como mencionado, a proteína FMRP desempenha importantes funções no neurodesenvolvimento e plasticidade sináptica. Sua ausência em portadores de SXF gera, provavelmente, modificações dramáticas na dinâmica e regulação de múltiplos processos intracelulares. E isso pode envolver o controle da estrutura e função das sinapses dentro sistema nervoso central [2].

Pesquisadores acreditam que alterações nos níveis de FMRP leve a síntese anormal de proteínas sinápticas, o que pode estar envolvido na expressão de fenótipos do espectro autista [8].

A proteína FMRP também atua diretamente no sistema endocanabinoide, principalmente sob uma das enzimas de síntese do 2-AG, a diacilglicerol lipase (DAGL). A diminuição ou ausência de FMRP gera prejuízos em uma série de processos intracelulares que culminam na desregulação da liberação “sob demanda” de 2-AG, prejudicando o funcionamento do sistema endocanabinoide, principalmente quanto à plasticidade sináptica [9, 10].

A plasticidade sináptica é capacidade das sinapses sofrerem alterações conforme os estímulos que recebem, formando novas conexões ou tornando-se mais fortes ou fracas. Essa é uma característica que se inicia nos estágios de desenvolvimento e permanece ativa durante a vida adulta. É a capacidade plástica das sinapses que possibilita o processo de aprendizagem, cognição e aquisição de novas memórias.

Portanto, a perda da plasticidade sináptica pode resultar nos déficits de aprendizagem, memória e responsividade comportamental e emocional observados na SXF [2].

A teoria atual que melhor explica o papel do sistema endocanabinoide na SXF refere-se ao prejuízo gerado pelas reduções de FMRP sobre a liberação de neurotransmissores como o glutamato e ácido gama-aminobutírico (GABA). A sinalização mediada por estes neurotransmissores é regulada, em parte, pelo sistema endocanabinoide e estudos já constataram que reduções nos níveis de FMRP levam a respostas alteradas em sinapses GABAéricas [2].

Portanto, acredita-se que na SXF perde-se um importante ponto de controle do sistema endocanabinoide sobre a neurotransmissão glutamatérgica e GABAérgica, gerando disfunções neuronais e expressão dos sintomas comportamentais e cognitivos.

De fato, estudos pré-clínicos em modelos de camundongos que não expressam a proteína FMRP (modelo para mimetizar a SXF em roedores) demonstram que tratamentos que aumentem os níveis de 2-AG conseguem normalizar atividades corticais e melhorar déficits comportamentais relacionados à ansiedade, hiperatividade e também a estímulos sonoros [11]. Além disso, a inibição da enzima DAGL em camundongos adultos induz comportamentos semelhantes aos encontrados no espectro autista e na SXF [12].

Estes são resultados que fortalecem ainda mais o papel do sistema endocanabinoide na fisiopatologia da SXF. Estas evidências fornecem fortes indícios que terapias canabinoides (ou outras substâncias que modulem a ação desse sistema) possam oferecer benefícios terapêuticos no tratamento da síndrome. É importante destacar que muitos estudos ainda estão em andamento (principalmente em humanos) e novas descobertas devem surgir nos próximos anos.

 

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Referências

[1] Coffee B, Keith K, Albizua I, Malone T, Mowrey J, Sherman SL, Warren ST. Incidence of fragile X syndrome by newborn screening for methylated FMR1 DNA. Am J Hum Genet. 2009 Oct;85(4):503-14. doi: 10.1016/j.ajhg.2009.09.007.

[2] Palumbo JM, Thomas BF, Budimirovic D, Siegel S, Tassone F, Hagerman R, Faulk C, O’Quinn S, Sebree T. Role of the endocannabinoid system in fragile X syndrome: potential mechanisms for benefit from cannabidiol treatment. J Neurodev Disord. 2023 Jan 9;15(1):1. doi: 10.1186/s11689-023-09475-z.

[3] Pretto D, Yrigollen CM, Tang HT, Williamson J, Espinal G, Iwahashi CK, Durbin-Johnson B, Hagerman RJ, Hagerman PJ, Tassone F. Clinical and molecular implications of mosaicism in FMR1 full mutations. Front Genet. 2014 Sep 17;5:318. doi: 10.3389/fgene.2014.00318.

[4] Kim K, Hessl D, Randol JL, Espinal GM, Schneider A, Protic D, Aydin EY, Hagerman RJ, Hagerman PJ. Association between IQ and FMR1 protein (FMRP) across the spectrum of CGG repeat expansions. PLoS One. 2019 Dec 31;14(12):e0226811. doi: 10.1371/journal.pone.0226811

[5] Katona I, Freund TF. Multiple functions of endocannabinoid signaling in the brain. Annu Rev Neurosci. 2012;35:529-58. doi: 10.1146/annurev-neuro-062111-150420. Epub 2012 Apr 17.

[6] Castillo PE, Younts TJ, Chávez AE, Hashimotodani Y. Endocannabinoid signaling and synaptic function. Neuron. 2012 Oct 4;76(1):70-81. doi: 10.1016/j.neuron.2012.09.020

[7] Ohno-Shosaku T, Kano M. Endocannabinoid-mediated retrograde modulation of synaptic transmission. Curr Opin Neurobiol. 2014 Dec;29:1-8. doi: 10.1016/j.conb.2014.03.017.

[8] Joo Y, Benavides DR. Local Protein Translation and RNA Processing of Synaptic Proteins in Autism Spectrum Disorder. Int J Mol Sci. 2021 Mar 10;22(6):2811. doi: 10.3390/ijms22062811.

[9] Jung KM, Sepers M, Henstridge CM, Lassalle O, Neuhofer D, Martin H, Ginger M, Frick A, DiPatrizio NV, Mackie K, Katona I, Piomelli D, Manzoni OJ. Uncoupling of the endocannabinoid signalling complex in a mouse model of fragile X syndrome. Nat Commun. 2012;3:1080. doi: 10.1038/ncomms2045.

[10] Maccarrone M, Rossi S, Bari M, De Chiara V, Rapino C, Musella A, Bernardi G, Bagni C, Centonze D. Abnormal mGlu 5 receptor/endocannabinoid coupling in mice lacking FMRP and BC1 RNA. Neuropsychopharmacology. 2010 Jun;35(7):1500-9. doi: 10.1038/npp.2010.19.

[11] Pirbhoy PS, Jonak CR, Syed R, Argueta DA, Perez PA, Wiley MB, Hessamian K, Lovelace JW, Razak KA, DiPatrizio NV, Ethell IM, Binder DK. Increased 2-arachidonoyl-sn-glycerol levels normalize cortical responses to sound and improve behaviors in Fmr1 KO mice. J Neurodev Disord. 2021 Oct 13;13(1):47. doi: 10.1186/s11689-021-09394-x.

[12] Fyke W, Premoli M, Echeverry Alzate V, López-Moreno JA, Lemaire-Mayo V, Crusio WE, Marsicano G, Wöhr M, Pietropaolo S. Communication and social interaction in the cannabinoid-type 1 receptor null mouse: Implications for autism spectrum disorder. Autism Res. 2021 Sep;14(9):1854-1872. doi: 10.1002/aur.2562.